A mulher no espelho: um encontro entre Pablo Picasso e a Psicanálise

"Mulher em frente ao espelho" (1932), Pablo Picasso

“Mulher em frente ao espelho” (1932), Pablo Picasso

Por Monica Marchese Swinerd
Aluna do ICP-RJ

Em minha prática clínica com pacientes atravessados por uma doença grave e, por vezez fatal, como o câncer, tenho escutado sobre o que é ter um corpo e os efeitos disso. Tenho me deixado causar pela escuta do que se passa em um corpo marcado e muitas vezes retalhado pelos tratamentos médicos, com a objetividade científica própria do discurso da medicina, isolando a doença, ou melhor, o órgão doente, daquele que o habita. Entre o corpo real e esse real que acomete o corpo, somos apresentados a um descompasso, um corpo visto que não equivale ao corpo imaginado. “Eu me olho no espelho e não me reconheço mais, essa não sou eu”, me dizia uma jovem paciente após um transplante de medula óssea por uma doença hematológica. Uma imagem que se impõe, mas onde o sujeito não se reconhece. Ansermet (1998) nos lembra que a prática da psicanálise nas fronteiras da medicina faz agrimensurar o campo da clínica do real, e acrescenta “nesse sentido, trabalhar como psicanalista no campo da medicina implica em admitir passar pelo mal-entendido, evitar contorná-lo, recobri-lo, apagá-lo, cumulá-lo com um saber a mais: resta calcular o paradoxo que consiste em ordenar uma prática a partir do reconhecimento do mal-entendido que a funda” (p. 4).

Sabemos, com Lacan, dos efeitos que uma imagem no espelho tem sobre a constituição do eu e, por isso, efeitos absolutamente determinantes para o sujeito. Miller lembra que “o eu é sucessivamente capturado por imagens ideais do outro. E capturado quer dizer que ali, no outro, é de onde ele se identifica” (1987/2012, p. 257). Portanto, nos diz Miller, “a imago não é qualquer imagem”, mas uma imagem circunscrita pelo simbólico, os significantes que dão a medida e sustenção da estrutura do sujeito.

Assim, o corpo, que comporta ao mesmo tempo o íntimo e o estranho, me faz pensar na obra artística de Pablo Picasso “A mulher no espelho”, cuja técnica, através do cubismo, nos dá a nítida dimensão de um corpo fragmentado, da fragmentação pela ciência, que deixa de fora a subjetividade, mas também da fragmentação pulsional, do descompasso entre o que se vê e o que se é. Portanto, Picasso e a Psicanálise se aproximam na medida em que ambos nos falam de um antinaturalismo do corpo, de um eu que não equivale ao corpo biológico, do Um que não cabe na imagem refletida. Mas, ao mesmo tempo, é através desse Outro, enquanto lugar para onde o sujeito dirige a sua questão, que faz retornar sobre o eu a pergunta: “quem sou eu?”. O corpo, esse contorno necessário, ao menos pode nos dar uma dimensão de quem somos.

Referências Bibliográficas:
Ansermet, F. Medicina e Psicanálise: elogio do mal-entendido. In: Opção lacaniana on line, ano 5, número 13, março de 2014.
Miller, J-A. El objeto del psicoanálisis. In: Los signos del goce. Los Cursos psicoanalíticos de J-A Miller. Buenos Aires: Paidós. 2012.

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